6 de mai. de 2013

Treinamento

Há um ano eu suava frio, desfazia a minha mochila e dava explicações pra um funcionário do serviço de segurança do Aeroporto Ben-Gurion, em Israel, antes de finalmente embarcar em um avião de volta ao Brasil. Em contrapartida, nesse último domingo, um ano depois dessa cena que acabei de descrever, embarcava num voo de São Paulo a Porto Alegre, depois de haver participado do Seminário de Capacitação dos novos voluntários do EAPPI.
 
E, dessa vez, sem indagações, sem mochilas reviradas, sem perguntas sobre amigos árabes. Passar pela segurança do Aeroporto de Congonhas, depois de participar de um encontro que, muito provavelmente, aos olhos da segurança de Israel, representaria uma ameaça completa, foi uma vitória, e, de certa forma, marcou essa celebração de um ano de retorno.
 
Me sentindo muito seguro em Jerusalém...
Que problema haveria em participar de um encontro como esse? Pra alguns, todos os problemas possíveis. Na minha volta de Ben-Gurion, como mencionei, tive a minha mochila desmanchada e fui encaminhado pra uma revista 'especial' com base unicamente no fato de ter dito, de forma totalmente ridícula e nervosa, que eu havia recebido 'umas lembranças' e que fizera contato com 'árabes'. Afinal, esses eram indícios mais do que seguros de que eu estaria 'inadvertidamente carregando material explosivo', como me explicou a simpática mocinha que falou comigo antes que eu fosse questionado por um agente de terno e gravata menor do que eu, mas duplamente mais chato.
 
Portão de Damasco em dia de protesto
 
 
Obviamente, com exceção de uns travesseirinhos de automóvel que o nosso motorista havia me dado de presente (e que eu queria preservar a todo custo), eu não carregava nada de anormal na minha mochila. De qualquer forma, o mais surpreendente dessa história é que, se eu tivesse dito que levava comigo alguma coisa dada por alguém de nome mais judaico, provavelmente teria passado incólume pela segurança do aeroporto. Não questiono a legitimidade do governo de Israel em adotar medidas mais severas pra garantir a segurança de suas fronteiras, mas isso, de forma alguma, justificaria a absurda presunção de que, por ter estado na Palestina ou haver falado com muçulmanos, poderia ser um terrorista em potencial.
 
E agora, cá vim eu, em um voo doméstico, sem que ninguém me perguntasse com quem eu falei, com quem eu andei, quem eu conheci, o que eu fiz, o que deixei de fazer, onde comprei as minhas roupas, por que eu gosto de abacate, etc. Enfim, embarquei, viajei e lanchei comida de avião sem que ninguém estivesse nem aí com o fato de haver visitado uma mesquita, falado com um rabino e discutido sobre a situação humanitária da Palestina com outras pessoas igualmente interessadas no assunto. 
 
Quer dizer, ao fim e ao cabo, depois de um ano da minha última experiência (até agora) com o aparato bélico de Israel, sigo pensando nos absurdos de um regime que justifica suas 'medidas preventivas' em posturas aleatórias e, o que é pior, de pura e simples discriminação. Ainda bem que há gente disposta a criticar e denunciar, com igual intensidade, todo e qualquer regime de segregação e de intolerância .

18 de jan. de 2013

Colônias, E1, Bab Al-Shams e todo o resto

                Uma notícia chamou a minha atenção por estes dias: a fundação, por alguns palestinos, de um vilarejo chamado Bab al-Shams (em português, algo como Porta do Sol), na denominada Area E1, estratégica para a expansão das colônias em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia.

A notícia é importante por diversos motivos. Para mim, no entanto, o que mais releva destacar é o fato de que ninguém entendeu nada do que aconteceu. E, bom, isso é compreensível; afinal, se já é difícil saber como de fato funciona a ocupação israelense, imagina saber de coisas com nomes misteriosos, como Bab al-Shams e Area E1.
Vilarejo de Bab al-Shams (Fonte: Activestills.org)
Resumidamente, o que aconteceu foi o seguinte: em resposta à obtenção da Palestina, na ONU, do status de Estado Observador, o Primeiro Ministro israelense Netanyahu anunciou a retomada de projetos de colonização na chamada área “E1”, uma pequena faixa de terras que conecta Jerusalém e uma outra grande colônia, Maale Adumim (que eu visitei), ao Vale do Rio Jordão. Com isso, seria praticamente inviabilizada a constituição de um Estado Palestino com fronteiras contíguas, ou seja, sem fracionamentos, bantustões e coisas do tipo.  
Em antecipação a essa medida, ativistas palestinos, em 11/01/2013, se reuniram e, usando-se de técnicas normalmente aplicadas por colonos judeus, ergueram, da noite para o dia, diversas tendas na colina que serviria de centro para os projetos de expansão de Netanyahu. Quer dizer, a população nativa valeu-se de estratégias normalmente utilizadas pelas forças de ocupação para, ela mesma, “ocupar” territórios que são, por direito, seus. Nada poderia ser mais simbólico e, ao mesmo tempo, mais bizarro.
No entanto, o projeto teve vida curta. Numa noite fria, depois de alguns dias de batalha jurídica, forças militares invadiram Bab al-Shams e evacuaram seus moradores. Ficaram, ali, algumas tendas, e a sensação de que talvez tenhamos visto umas das medidas de resistência pacífica mais sensacionais dos últimos tempos.
A questão das colônias israelenses na Cisjordânia não é fácil. Desde a Guerra de 1967, Israel vem atraindo imigrantes para viver em colônias estabelecidas no interior do que seria parte do Estado Palestino, o que, além de ilegal conforme o Direito Internacional, implica um verdadeiro regime de segregação que muito lembra o de apartheid praticado na África do Sul. Muro de separação, checkpoints, estradas exclusivas para colonos, portas agrícolas,distribuição desigual de recursos hídricos, etc., tudo isso decorre desseprocesso lento, porém firme, de anexação de terras que originalmente não comporiam o Estado de Israel. A tal colônia na área “E1” seria, portanto, a cereja no topo de um bolo que só é gostoso para alguns.
 
Colônia de Ma'ale Adumim: riqueza e apoio estatal na Área E1 (Foto de Sean Smith, para o The Guardian)


Fazia muito tempo que não se tomava conhecimento de um desafio tão real. E, aliás, talvez por isso mesmo Israel tenha sido tão eficiente em abafar o caso, aumentando a confusão a respeito do ocorrido. Afinal, imaginem centenas de palestinos saindo de suas espremidas cidades localizadas em Áreas A e iniciando vilarejos em locais destinadas a operações militares, à expansão de colônias, à extração de minerais, etc. Seria algo incrível e, possivelmente, incontrolável.
Afinal, existir, tal como vi pintado na barreira de separação em Belém, é, de fato, uma das formas mais inteligentes de resistência que podem existir. Seguindo essa linha – de luta pacífica – talvez possa mesmo ser possível imaginar um Estado Palestino. Nada mais do que sonho, mas...

27 de ago. de 2012

Israel e Palestina em quadrinhos

Estamos quase em setembro, mas parece que eu ainda não voltei de viagem. Afinal, ao retornar, me comprometi a divulgar a minha experiência nos territórios ocupados, e, para isso, preciso ainda manter-me atualizado sobre o que acontece em Israel e na Palestina.

Assim é que, para algumas apresentações que encaminhamos nos últimos meses (obrigado IECLB, FAPA e UNISINOS :D), com o intuito de expor um pouco das violações aos Direitos Humanos que vimos por lá, acabei me deparando com uma obra em quadrinhos chamada Jerusalem: Chronicles from the Holy City, do cartunista canadense Guy Delisle (Editora Farrar Straus & Giro; preço médio: R$ 70,00).  

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Capa do livro – agora vocês sabem como ele se parece (Copyright 2012 by Guy Delisle)

É um livro grande, de 300 e tantas páginas, que cobre o período em que Guy viveu em Jerusalém Oriental, em companhia de sua esposa, funcionária da ONG Médicos sem Fronteiras, e de seus dois filhos pequenos. É uma leitura de fácil entendimento, mas nem por isso boba, sobre o dia-a-dia do conflito, visto pelos olhos de alguém que esteve em Israel entre os anos de 2008 e 2009 e teve a oportunidade inclusive de acompanhar a chamada operação Cast Lead.

Acabei me identificando muito com o livro. A dificuldade inicial com a língua, a adaptação ao universo de homens de roupa escura e mulheres vestidas dos pés à cabeça, o choque com o muro de Belém e a divisão de Hebron, o olhar admirado sobre Tel Aviv, os golfinhos de Eilat, a beleza (e tristezas) da fé religiosa, a neurose com a segurança, tudo que é capaz de marcar qualquer um que passa uma temporada por lá, aparece no traço e nos diálogos dos personagens (reais) da obra do canadense.
 
Não se trata de um livro “engajado”, no sentido de que ele eventualmente se posicione em favor de algum dos lados. Pelo contrário, o grande mérito de Delisle é justamente conseguir captar as nuances do conflito, desfazendo dicotomias e ilustrando o que há de mais positivo, negativo e pitoresco naquilo que observa, sem, contudo, fugir da sua (quase) obrigação de retratar a ocupação com ela realmente é: burocrática, desproporcional e desumanizadora.
 
Seus traços são simples, mas sensíveis. Embora talvez melhor aproveitados por aqueles que já tiveram a oportunidade de viver em Israel e nos Territórios Ocupados, principalmente em razão das lembranças que ele desperta - quatro ou cinco quadrinhos mostram o trabalho do Conselho Mundial de Igrejas junto a um dos checkpoints de Ramallah! –, é um livro que indico também para aqueles que têm interesse em se inteirar sobre o assunto, a partir do ponto de vista de um estrangeiro que não tinha qualquer vínculo prévio com as pessoas e com os problemas daquela parte do globo – mas que, como todo mundo que passa por uma experiência dessas, acabou se conectando a tudo que viu.

8 de jul. de 2012

Sebastiya

Devia um post sobre um dos meus lugares favoritos na Palestina. E aproveito também para falar sobre as dificuldades de se preservar o patrimônio histórico-cultural em meio à ocupação militar israelense.

 

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Tentando derrubar o que restou de Sebastiya (Foto: María Isabel Fiallo Flor)

Sebastiya é um vilarejo situado ao norte da Cisjordânia, nas proximidades de Nablus, que guarda um dos mais completos conjuntos arqueológicos da região do Levante. Ali estão localizados os restos de uma antiga cidade romana chamada Sebaste, além de edifícios do tempo dos bizantinos e outras culturas. Afora isso, ali estaria localizada a tumba de São João Batista, o responsável por nada mais, nada menos, batizar Jesus Cristo. Ponto de peregrinação importante, principalmente para cristãos ortodoxos, lá há inclusive uma uma catedral imensa, erguida pelos cruzados, catedral essa que, depois da conquista árabe, foi convertida em mesquita.

Sebastiya certamente poderia competir em importância com famosos sítios arqueológicos israelenses abertos à visitação, como Caesarea. Digo poderia porque, bem, Sebastiya está na Palestina, não em Israel, e isso significa uma série de problemas.

A começar que é praticamente impossível saber qualquer coisa dela por vias normais. Não há pacotes de turismo, não tem programa de TV, nunca teve filmagem hollywodiana (como Petra, na Jordânia) e os recursos para propagandeá-la são tão escassos quanto água no deserto. Eu só vim a saber de Sebastiya porque, como quase-historiador, tenho faro pra identificar nomes de cidades com potencial pra esconderem coisas divertidas. E, de fato, Sebastiya esconde muita coisa “velha” que só gente como eu vê alguma graça.

Além disso, Sebastiya sofre com a precariedade. A vila, conforme os Acordos de Oslo, está parte situada no que se considera Área B, onde a ANP só tem controle sobre os assuntos civis, e em parte no que se considera Área C, onde os assuntos civis e militares ficam “aos cuidados” das forças de ocupação. Isso significa que a Autoridade Palestina não tem total controle nem sequer sobre a totalidade do sítio arqueológico. Em outras palavras, embora em território palestino, uma seção inteira das ruínas na verdade depende da boa vontade de Israel pra ser preservada. E vocês devem imaginar o quanto isso é complicado, especialmente quando logo ali do lado há uma colônia ilegalmente instalada em propriedade de palestinos. Aliás, cooperação nesse caso é algo que não parece passar pela cabeça de ninguém, ainda mais depois que Israel ocupou o sítio arqueológico de Herodium, em plena Cisjordânia, a poucos quilômetros de Belém, fazendo dele um dos seus hot spots turísticos…

Sebastiya infelizmente não é a exceção nos territórios ocupados. Muitos locais com enorme potencial turístico sofrem com falta de conservação e com o desleixo tanto da Autoridade Palestina quanto das forças de ocupação israelense.  A esperança é que as coisas mudem em razão do ingresso da Palestina na UNESCO. A primeira consequência positiva desse ingresso - que sofreu a oposição dos EUA e de Israel – foi a inserção da Igreja da Natividade, em Belém, no rol de bens considerados como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. O valor simbólico da medida é evidente, porque assegura que a Palestina, assim como qualquer outro Estado no mundo, faz jus a ter os seus marcos histórico-culturais reconhecidos mundialmente. Sim, pois é, não é só Israel que tem direito a ter a sua história preservada.

Talvez chegue um dia em que Sebastiya usufrua do mesmo benefício concedido à Igreja da Natividade. E, inshallah, não haverá mais ocupação…

 

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Mesquita + Catedral Templária + Lua (Foto: Érico Loyola)

29 de mai. de 2012

O dia em que os turcos foram derrotados às portas de Viena…

Em 1683 as tropas otomanas foram derrotadas pela Santa Liga nos arredores de Viena. Esse combate, que colocou de um lado os exércitos do Sultanato e do outro uma aliança formada por reinos cristãos germânicos, foi fundamental para impedir a expansão do Império Turco na Europa. Aliás, muito mais do que isso, na mentalidade da época,  a vitória dos europeus significou a derrota dos “infiéis” muçulmanos pelas espadas “cristãs”.

Esse momento foi tão significativo que no interior da Basílica de São Pedro, no Vaticano, foi construído um monumento a Inocêncio XI, o Papa que ajudou a mobilizar os exércitos contra os “inimigos” da Cristandade. E, bem, foi um tanto quanto curioso ver aquela estátua depois de ter passado três meses vivendo entre palestinos muçulmanos. Afinal, durante meu período por lá não vi nada que indicasse o mínimo conflito entre Islã e Cristianismo; visitar a Igreja da Natividade em Belém, por exemplo, é mais fácil do que comprar falafel, e Jesus Cristo é um dos profetas mais respeitados entre os seguidores de Maomé.

De alguma forma, no entanto, a mentalidade “Batalha de Viena” não morreu. Sempre somos nós contra eles, e eles contra a gente, numa batalha cultural pela primazia do mundo. Basta pensar nas Cruzadas, ou mais recentemente nos ataques às Torres Gêmeas em Nova Iórque:  em ambas as situações embarcamos numa generalização inexplicável, como se tudo se resumisse à luta entre modernos e democráticos cristãos, filhos do Ocidente, contra atrasados e autoritários muçulmanos, vassalos do Oriente.

Realmente, nada pode ser pior do que uma generalização abobada, ainda mais quanto essa se presta a justificar uma suposta superioridade de uma certa “cultura” sobre outra. Interações ocorreram e ocorrem ao longo da História, colocando um grupo em contato com o outro, num processo que, por meio de contribuições mútuas, desenvolve e por assim dizer modifica a forma corrente de vermos/pensarmos o mundo. Os gregos, por exemplo, aprenderam muito com as culturas mesopotâmicas (corriqueiramente consideradas “orientais”), ao passo que os árabes, posteriormente, se aproveitaram muito da filosofia desenvolvida pelos mesmos gregos. A ideia do Ocidente como espaço da democracia também pode ser colocado em xeque quando pensamos nos diferentes tratamentos dispensados a árabes e judeus residentes em território israelense.

 

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Mesquita decorando um palácio do Rei Ludwig II na Bavária

Alguns podem se vangloriar que o cristianismo bloqueou a influência árabe às portas de Viena. Hoje, no entanto, elas se fazem mais do que nunca presentes na Europa, seja por meio de lojas que vendem kebabs ou por via de museus que expõem obras tomadas pelos exércitos imperiais no Oriente Próximo e no norte da África. Generalizamos como inferior, mas ao mesmo tempo é inegável que admiramos a riqueza das mesquitas e nos encantamos com a riqueza da cultura que vem para lá do Bósforo.

A estátua de Inocêncio XI pode estar na Basílica de São Pedro celebrando o que quer que esteja, mas a ideia de autossuficiência e superioridade que ela passa é completamente absurda.  

26 de abr. de 2012

Closing Time

Tudo começou três meses atrás. Não sabia direito o que estava fazendo e a ansiedade de vir pra um lugar desconhecido, no meio de um dos piores conflitos do mundo, era a tônica do meu dia-a-dia. Sair do emprego, repensar a vida, reprogramar-se, seguir um sonho quase infantil de prestar ajuda numa terra distante, experimentando na prática tudo que aprendi a gostar nesses meus 27 anos. Quando daqui a alguns dias (inshallah!) partir no meu voo rumo a Roma vou sentir muita tristeza por tudo que vou deixar para trás e, ao mesmo tempo, uma felicidade sem fim por tudo que consegui fazer.  

Nos últimos dias venho tentando descobrir no tempo alguns detalhes que de alguma maneira podem ter me levado a vir pra cá. Copiar bandeiras de países e desenhar continentes imaginários devem ter sido os primeiros indícios do que viria acontecer. Depois disso apareceu um amor bizarro por montar historinhas imaginárias violentas, com direito a sonoplastia de explosões e tudo. Mais adiante, no colégio, veio o prazer em decorar nomes de pedras, ler qualquer coisa relacionada à História (fosse ela a História do Bairro Sarandi ou do Império Austro-Húngaro), discutir política e religião. Em seguida, no curso de Direito, me animei com discussões não tão pseudo-filosóficas sobre Relações Internacionais, e, depois, o meu trabalho, onde aprendi a gostar da Justiça pela simples e pura Justiça. Finalmente, o curso de História, a 8ª maravilha do mundo, com toda sua humanidade.

E aqui estou, quase no fim de três meses (bem) vividos entre Palestina e Israel. A gente acha que uma viagem dessas é capaz de mudar a cabeça de qualquer pessoa, mas, no meu caso, ela serviu mesmo para mostrar que o menino asmático que desenhava bandeirinhas é só a versão 0.1 do que eu sou hoje. Quer dizer, a pessoa que sou hoje ainda é, de alguma forma, a pessoinha que eu eu era tempos atrás, e o que eu vi e experimentei nesse período é só uma consequência de tudo que cultivei ao longo dessa minha vida. E, posso dizer, acho que estou satisfeito com o que fiz até agora. Realmente, não tem nada mais importante pra mim do que a relação entre pessoas e povos e todos os aspectos políticos, sociais e culturais que isso engedra.

A partir dessa correlação “bandeirinhas – política internacional” posso dizer que hoje me sinto mais humano e consciente de que sofro e me preocupo muito mais com o sofrimento dos outros. Mas e todos os outros que não se preocupam? Pois é, esses são os piores inimigos de um idealista e o maior obstáculo para a consolidação da Justiça.

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Muro em Belém. Nothing lasts forever.

Um exemplo prático disso: dia desses fui cruzar o Checkpoint 300, em Belém. Era domingo e centenas de pessoas queriam visitar Jerusalém. Só havia um detector de metais e uma pessoa para checar os documentos. Desse modo, tudo funcionava a passo de tartaruga e eu demorei exatamente uma hora para passar pro outro lado (= andar 50 metros). Completamente frustrado com a situação resolvi falar com um soldado pra saber se ele não poderia acionar alguém para colocar mais um detector de metais, ou pelo menos deixar mais gente entrar ao mesmo tempo pra checagem. A resposta foi, no mínimo, engraçada: “não, não tem nada que se possa fazer, o problema é que tem muita gente”. 

Certo, o problema é “gente demais”, então. Provavelmente esse soldado não teve tempo suficiente para olhar para si mesmo e ver que a única coisa que mais importa nesse mundo é “a gente” e tudo que gira em torno dela. No dia em que ele entender que faz parte dessa “gente”, deixando de ter medo de amar as pessoas, talvez as coisas comecem a mudar. Muros, checkpoints, permissões, colônias, apartheid, tudo isso vai desaparecer. 

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Definitivamente!

17 de abr. de 2012

Jubara

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Bem-vindo a Jbarah, Jbara ou Jubara! (Foto: Érico Loyola)

A vila de Jubara, além de poder ser soletrada de diversas formas,  é um microcosmo dos males ocasionados pelo muro que separa Israel da Palestina. Por motivos que até hoje ninguém entende seus 300 habitantes, todos com identidad palestina, foram postos no lado israelense do muro, muito embora os mapas pré-1967 deixem mais do que claro que ela deveria pertencer ao território palestino. Em razão disso, os moradores se organizaram, contrataram um advogado e ganharam na Suprema Corte o direito de ver a linha do muro redesenhada, de forma que as terras pertencentes aos moradores de Jubara sejam incorporadas à Cisjordânia. Bem, essa decisão foi tomada em 2004. Só agora, no entanto, as máquinas começaram a trabalhar.

Do lugar onde estamos sentados, à sombra de uma árvore, eu, minha colega e Ahmad, um professor aposentado, conseguimos observar o serpentear da cerca de arame farpado (lá o muro é na verdade uma cerca de arame farpado – o que não significa que seja uma visão agradável). Pertinho dali ainda há um portão monitorado 24 horas pelo exército, cujo acesso somente é permitido a moradores locais; isso significa que se alguém quiser visitar Ahmad vindo da Palestina terá antes que conseguir uma permissão do governo israelense. Com o novo desenho esse exílio acabará, mas, como tudo o que acontece por essas bandas, o que vem pro bem da situação palestina resulta numa dor de cabeça tremenda.

 

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O Checkpoint que hoje separa Jubara do resto da Palestina – tiramos a foto longe para que os soldados não vissem :/ (Foto: Érico Loyola)

A começar pela própria demora no início das obras. Foram-se 8 anos até que ela finalmente começasse, isso desanima qualquer um que pense em agir “pacificamente” pra conseguir alguma mudança a partir das autoridades israelenses. Além disso, o próprio princípio da coisa está errado: por que alguém precisa entrar na Justiça pra ter reconhecido que as fronteiras palestinas vão mais além de onde hoje está a barreira que separa os dois países? Por que o governo de Israel não fez o favor de observar a decisão da Corte Internacional de Justiça sobre a ilegalidade da construção do muro em território palestino, que resultou, na prática, na indevida incorporação de território?

Além disso, a vitória na Justiça não foi total. Apesar de redesenhada, algumas terras pertencentes a palestinos ficarão do lado israelense da barreira, o que resultará na abertura de uma Agricultural Gate. Ou seja, várias pessoas terão que solicitar uma permissão por parte dos israelenses para acessar em datas específicas terras que lhes pertencem, com registro e tudo. Permissão semelhante deverá ser solicitada caso alguém deseje visitar algum parente que esteja morando em qualquer cidade israelense, como Taybe. Em outras palavras, em razão da nova “fronteira”, Jubara perderá a continuidade territorial que hoje desfruta com várias cidades, que hoje podem ser facilmente acessadas, ainda que “ilegalmente”, em razão do fato de simplesmente estar pra lá da cerca de arame farpado. Quer dizer, o exílio termina de um lado, mas começa do outro.

Finalmente, vem o risco das demolições. Conforme os Acordos de Oslo, parte da vila de Jubara está hoje no que é considerado Área B, e parte no que é considerado Área C, o que significa que muitas das casas que foram edificadas desde que a barreira que separa Israel da Palestina foi construída correm risco iminente de demolição. Quatro famílias, aliás, já receberam ordens para parar a construção de suas residências e uma escola primária que só existe em razão de doações da União Europeia pode eventualmente também ser posta abaixo, assim como diversas outras edificações em Área C.

Perto de todos esses contras, parece que não há motivo algum pra desejar estar do lado palestino. Burocracia e incerteza parece ser tudo que espera Ahmad e todos os habitantes de Jubara. No entanto, o próprio Ahmad é um exemplo de que a causa de um Estado palestino é mais forte do que problemas individuais: com o novo desenho do muro, ele perderá o fácil acesso que hoje tem para visitar diversos de seus parentes que vivem em Taybe, e um de seus filhos provavelmente não mais poderá seguir trabalhando na mesma cidade. Ele tem certeza de que a luta exige sacrifícios, mas que esses valerão a pena; o que realmente importa, segundo Ahmad, é que “se recupere as terras palestinas, com os israelenses vivendo do lado deles, e nós vivendo no nosso”.

 

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Nas terras de Ahmad (Foto: Érico Loyola)

Realmente, todos esperamos que isso seja possível um dia.