Portão de Damasco em dia de protesto |
Entre Santos e Checkpoints
Três meses vivendo entre santos, soldados e peregrinos. Três meses aprendendo a conviver com a distância e a proximidade, com horizontes e checkpoints. Três meses entre o que havia de concreto e o que havia de sagrado no mundo. Um olhar que é enfim transportado para a extraordinariedade do cotidiano.
6 de mai. de 2013
Treinamento
18 de jan. de 2013
Colônias, E1, Bab Al-Shams e todo o resto
27 de ago. de 2012
Israel e Palestina em quadrinhos
8 de jul. de 2012
Sebastiya
Devia um post sobre um dos meus lugares favoritos na Palestina. E aproveito também para falar sobre as dificuldades de se preservar o patrimônio histórico-cultural em meio à ocupação militar israelense.
Tentando derrubar o que restou de Sebastiya (Foto: María Isabel Fiallo Flor)
Sebastiya é um vilarejo situado ao norte da Cisjordânia, nas proximidades de Nablus, que guarda um dos mais completos conjuntos arqueológicos da região do Levante. Ali estão localizados os restos de uma antiga cidade romana chamada Sebaste, além de edifícios do tempo dos bizantinos e outras culturas. Afora isso, ali estaria localizada a tumba de São João Batista, o responsável por nada mais, nada menos, batizar Jesus Cristo. Ponto de peregrinação importante, principalmente para cristãos ortodoxos, lá há inclusive uma uma catedral imensa, erguida pelos cruzados, catedral essa que, depois da conquista árabe, foi convertida em mesquita.
Sebastiya certamente poderia competir em importância com famosos sítios arqueológicos israelenses abertos à visitação, como Caesarea. Digo poderia porque, bem, Sebastiya está na Palestina, não em Israel, e isso significa uma série de problemas.
A começar que é praticamente impossível saber qualquer coisa dela por vias normais. Não há pacotes de turismo, não tem programa de TV, nunca teve filmagem hollywodiana (como Petra, na Jordânia) e os recursos para propagandeá-la são tão escassos quanto água no deserto. Eu só vim a saber de Sebastiya porque, como quase-historiador, tenho faro pra identificar nomes de cidades com potencial pra esconderem coisas divertidas. E, de fato, Sebastiya esconde muita coisa “velha” que só gente como eu vê alguma graça.
Além disso, Sebastiya sofre com a precariedade. A vila, conforme os Acordos de Oslo, está parte situada no que se considera Área B, onde a ANP só tem controle sobre os assuntos civis, e em parte no que se considera Área C, onde os assuntos civis e militares ficam “aos cuidados” das forças de ocupação. Isso significa que a Autoridade Palestina não tem total controle nem sequer sobre a totalidade do sítio arqueológico. Em outras palavras, embora em território palestino, uma seção inteira das ruínas na verdade depende da boa vontade de Israel pra ser preservada. E vocês devem imaginar o quanto isso é complicado, especialmente quando logo ali do lado há uma colônia ilegalmente instalada em propriedade de palestinos. Aliás, cooperação nesse caso é algo que não parece passar pela cabeça de ninguém, ainda mais depois que Israel ocupou o sítio arqueológico de Herodium, em plena Cisjordânia, a poucos quilômetros de Belém, fazendo dele um dos seus hot spots turísticos…
Sebastiya infelizmente não é a exceção nos territórios ocupados. Muitos locais com enorme potencial turístico sofrem com falta de conservação e com o desleixo tanto da Autoridade Palestina quanto das forças de ocupação israelense. A esperança é que as coisas mudem em razão do ingresso da Palestina na UNESCO. A primeira consequência positiva desse ingresso - que sofreu a oposição dos EUA e de Israel – foi a inserção da Igreja da Natividade, em Belém, no rol de bens considerados como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. O valor simbólico da medida é evidente, porque assegura que a Palestina, assim como qualquer outro Estado no mundo, faz jus a ter os seus marcos histórico-culturais reconhecidos mundialmente. Sim, pois é, não é só Israel que tem direito a ter a sua história preservada.
Talvez chegue um dia em que Sebastiya usufrua do mesmo benefício concedido à Igreja da Natividade. E, inshallah, não haverá mais ocupação…
Mesquita + Catedral Templária + Lua (Foto: Érico Loyola)
29 de mai. de 2012
O dia em que os turcos foram derrotados às portas de Viena…
Em 1683 as tropas otomanas foram derrotadas pela Santa Liga nos arredores de Viena. Esse combate, que colocou de um lado os exércitos do Sultanato e do outro uma aliança formada por reinos cristãos germânicos, foi fundamental para impedir a expansão do Império Turco na Europa. Aliás, muito mais do que isso, na mentalidade da época, a vitória dos europeus significou a derrota dos “infiéis” muçulmanos pelas espadas “cristãs”.
Esse momento foi tão significativo que no interior da Basílica de São Pedro, no Vaticano, foi construído um monumento a Inocêncio XI, o Papa que ajudou a mobilizar os exércitos contra os “inimigos” da Cristandade. E, bem, foi um tanto quanto curioso ver aquela estátua depois de ter passado três meses vivendo entre palestinos muçulmanos. Afinal, durante meu período por lá não vi nada que indicasse o mínimo conflito entre Islã e Cristianismo; visitar a Igreja da Natividade em Belém, por exemplo, é mais fácil do que comprar falafel, e Jesus Cristo é um dos profetas mais respeitados entre os seguidores de Maomé.
De alguma forma, no entanto, a mentalidade “Batalha de Viena” não morreu. Sempre somos nós contra eles, e eles contra a gente, numa batalha cultural pela primazia do mundo. Basta pensar nas Cruzadas, ou mais recentemente nos ataques às Torres Gêmeas em Nova Iórque: em ambas as situações embarcamos numa generalização inexplicável, como se tudo se resumisse à luta entre modernos e democráticos cristãos, filhos do Ocidente, contra atrasados e autoritários muçulmanos, vassalos do Oriente.
Realmente, nada pode ser pior do que uma generalização abobada, ainda mais quanto essa se presta a justificar uma suposta superioridade de uma certa “cultura” sobre outra. Interações ocorreram e ocorrem ao longo da História, colocando um grupo em contato com o outro, num processo que, por meio de contribuições mútuas, desenvolve e por assim dizer modifica a forma corrente de vermos/pensarmos o mundo. Os gregos, por exemplo, aprenderam muito com as culturas mesopotâmicas (corriqueiramente consideradas “orientais”), ao passo que os árabes, posteriormente, se aproveitaram muito da filosofia desenvolvida pelos mesmos gregos. A ideia do Ocidente como espaço da democracia também pode ser colocado em xeque quando pensamos nos diferentes tratamentos dispensados a árabes e judeus residentes em território israelense.
Mesquita decorando um palácio do Rei Ludwig II na Bavária
Alguns podem se vangloriar que o cristianismo bloqueou a influência árabe às portas de Viena. Hoje, no entanto, elas se fazem mais do que nunca presentes na Europa, seja por meio de lojas que vendem kebabs ou por via de museus que expõem obras tomadas pelos exércitos imperiais no Oriente Próximo e no norte da África. Generalizamos como inferior, mas ao mesmo tempo é inegável que admiramos a riqueza das mesquitas e nos encantamos com a riqueza da cultura que vem para lá do Bósforo.
A estátua de Inocêncio XI pode estar na Basílica de São Pedro celebrando o que quer que esteja, mas a ideia de autossuficiência e superioridade que ela passa é completamente absurda.
26 de abr. de 2012
Closing Time
Tudo começou três meses atrás. Não sabia direito o que estava fazendo e a ansiedade de vir pra um lugar desconhecido, no meio de um dos piores conflitos do mundo, era a tônica do meu dia-a-dia. Sair do emprego, repensar a vida, reprogramar-se, seguir um sonho quase infantil de prestar ajuda numa terra distante, experimentando na prática tudo que aprendi a gostar nesses meus 27 anos. Quando daqui a alguns dias (inshallah!) partir no meu voo rumo a Roma vou sentir muita tristeza por tudo que vou deixar para trás e, ao mesmo tempo, uma felicidade sem fim por tudo que consegui fazer.
Nos últimos dias venho tentando descobrir no tempo alguns detalhes que de alguma maneira podem ter me levado a vir pra cá. Copiar bandeiras de países e desenhar continentes imaginários devem ter sido os primeiros indícios do que viria acontecer. Depois disso apareceu um amor bizarro por montar historinhas imaginárias violentas, com direito a sonoplastia de explosões e tudo. Mais adiante, no colégio, veio o prazer em decorar nomes de pedras, ler qualquer coisa relacionada à História (fosse ela a História do Bairro Sarandi ou do Império Austro-Húngaro), discutir política e religião. Em seguida, no curso de Direito, me animei com discussões não tão pseudo-filosóficas sobre Relações Internacionais, e, depois, o meu trabalho, onde aprendi a gostar da Justiça pela simples e pura Justiça. Finalmente, o curso de História, a 8ª maravilha do mundo, com toda sua humanidade.
E aqui estou, quase no fim de três meses (bem) vividos entre Palestina e Israel. A gente acha que uma viagem dessas é capaz de mudar a cabeça de qualquer pessoa, mas, no meu caso, ela serviu mesmo para mostrar que o menino asmático que desenhava bandeirinhas é só a versão 0.1 do que eu sou hoje. Quer dizer, a pessoa que sou hoje ainda é, de alguma forma, a pessoinha que eu eu era tempos atrás, e o que eu vi e experimentei nesse período é só uma consequência de tudo que cultivei ao longo dessa minha vida. E, posso dizer, acho que estou satisfeito com o que fiz até agora. Realmente, não tem nada mais importante pra mim do que a relação entre pessoas e povos e todos os aspectos políticos, sociais e culturais que isso engedra.
A partir dessa correlação “bandeirinhas – política internacional” posso dizer que hoje me sinto mais humano e consciente de que sofro e me preocupo muito mais com o sofrimento dos outros. Mas e todos os outros que não se preocupam? Pois é, esses são os piores inimigos de um idealista e o maior obstáculo para a consolidação da Justiça.
Muro em Belém. Nothing lasts forever.
Um exemplo prático disso: dia desses fui cruzar o Checkpoint 300, em Belém. Era domingo e centenas de pessoas queriam visitar Jerusalém. Só havia um detector de metais e uma pessoa para checar os documentos. Desse modo, tudo funcionava a passo de tartaruga e eu demorei exatamente uma hora para passar pro outro lado (= andar 50 metros). Completamente frustrado com a situação resolvi falar com um soldado pra saber se ele não poderia acionar alguém para colocar mais um detector de metais, ou pelo menos deixar mais gente entrar ao mesmo tempo pra checagem. A resposta foi, no mínimo, engraçada: “não, não tem nada que se possa fazer, o problema é que tem muita gente”.
Certo, o problema é “gente demais”, então. Provavelmente esse soldado não teve tempo suficiente para olhar para si mesmo e ver que a única coisa que mais importa nesse mundo é “a gente” e tudo que gira em torno dela. No dia em que ele entender que faz parte dessa “gente”, deixando de ter medo de amar as pessoas, talvez as coisas comecem a mudar. Muros, checkpoints, permissões, colônias, apartheid, tudo isso vai desaparecer.
Definitivamente!
17 de abr. de 2012
Jubara
Bem-vindo a Jbarah, Jbara ou Jubara! (Foto: Érico Loyola)
A vila de Jubara, além de poder ser soletrada de diversas formas, é um microcosmo dos males ocasionados pelo muro que separa Israel da Palestina. Por motivos que até hoje ninguém entende seus 300 habitantes, todos com identidad palestina, foram postos no lado israelense do muro, muito embora os mapas pré-1967 deixem mais do que claro que ela deveria pertencer ao território palestino. Em razão disso, os moradores se organizaram, contrataram um advogado e ganharam na Suprema Corte o direito de ver a linha do muro redesenhada, de forma que as terras pertencentes aos moradores de Jubara sejam incorporadas à Cisjordânia. Bem, essa decisão foi tomada em 2004. Só agora, no entanto, as máquinas começaram a trabalhar.
Do lugar onde estamos sentados, à sombra de uma árvore, eu, minha colega e Ahmad, um professor aposentado, conseguimos observar o serpentear da cerca de arame farpado (lá o muro é na verdade uma cerca de arame farpado – o que não significa que seja uma visão agradável). Pertinho dali ainda há um portão monitorado 24 horas pelo exército, cujo acesso somente é permitido a moradores locais; isso significa que se alguém quiser visitar Ahmad vindo da Palestina terá antes que conseguir uma permissão do governo israelense. Com o novo desenho esse exílio acabará, mas, como tudo o que acontece por essas bandas, o que vem pro bem da situação palestina resulta numa dor de cabeça tremenda.
O Checkpoint que hoje separa Jubara do resto da Palestina – tiramos a foto longe para que os soldados não vissem :/ (Foto: Érico Loyola)
A começar pela própria demora no início das obras. Foram-se 8 anos até que ela finalmente começasse, isso desanima qualquer um que pense em agir “pacificamente” pra conseguir alguma mudança a partir das autoridades israelenses. Além disso, o próprio princípio da coisa está errado: por que alguém precisa entrar na Justiça pra ter reconhecido que as fronteiras palestinas vão mais além de onde hoje está a barreira que separa os dois países? Por que o governo de Israel não fez o favor de observar a decisão da Corte Internacional de Justiça sobre a ilegalidade da construção do muro em território palestino, que resultou, na prática, na indevida incorporação de território?
Além disso, a vitória na Justiça não foi total. Apesar de redesenhada, algumas terras pertencentes a palestinos ficarão do lado israelense da barreira, o que resultará na abertura de uma Agricultural Gate. Ou seja, várias pessoas terão que solicitar uma permissão por parte dos israelenses para acessar em datas específicas terras que lhes pertencem, com registro e tudo. Permissão semelhante deverá ser solicitada caso alguém deseje visitar algum parente que esteja morando em qualquer cidade israelense, como Taybe. Em outras palavras, em razão da nova “fronteira”, Jubara perderá a continuidade territorial que hoje desfruta com várias cidades, que hoje podem ser facilmente acessadas, ainda que “ilegalmente”, em razão do fato de simplesmente estar pra lá da cerca de arame farpado. Quer dizer, o exílio termina de um lado, mas começa do outro.
Finalmente, vem o risco das demolições. Conforme os Acordos de Oslo, parte da vila de Jubara está hoje no que é considerado Área B, e parte no que é considerado Área C, o que significa que muitas das casas que foram edificadas desde que a barreira que separa Israel da Palestina foi construída correm risco iminente de demolição. Quatro famílias, aliás, já receberam ordens para parar a construção de suas residências e uma escola primária que só existe em razão de doações da União Europeia pode eventualmente também ser posta abaixo, assim como diversas outras edificações em Área C.
Perto de todos esses contras, parece que não há motivo algum pra desejar estar do lado palestino. Burocracia e incerteza parece ser tudo que espera Ahmad e todos os habitantes de Jubara. No entanto, o próprio Ahmad é um exemplo de que a causa de um Estado palestino é mais forte do que problemas individuais: com o novo desenho do muro, ele perderá o fácil acesso que hoje tem para visitar diversos de seus parentes que vivem em Taybe, e um de seus filhos provavelmente não mais poderá seguir trabalhando na mesma cidade. Ele tem certeza de que a luta exige sacrifícios, mas que esses valerão a pena; o que realmente importa, segundo Ahmad, é que “se recupere as terras palestinas, com os israelenses vivendo do lado deles, e nós vivendo no nosso”.
Nas terras de Ahmad (Foto: Érico Loyola)
Realmente, todos esperamos que isso seja possível um dia.